Com autorização da diretoria, um repórter do Fantástico se passou por gestor de compras de um hospital público no Rio de Janeiro para entender o funcionamento do esquema de corrupção em licitações de órgãos públicos. Existe alguma novidade na matéria?
Neste domingo (18), o Fantástico veiculou mais uma reportagem denunciando esquema de corrupção em licitações de órgãos públicos. O repórter Eduardo Faustini se passou por gestor de compras do hospital de pediatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro por mais de dois meses, com a ajuda do diretor e do vice, as duas únicas pessoas que tiveram conhecimento do fato. Logo no início da matéria, o repórter André Luiz Azevedo diz: “Você vai se assustar com o truque que eles usam para esconder o suborno.” e “O Fantástico mostra agora o mundo da propina, da fraude, da corrupção. De um jeito como você nunca viu.” Será mesmo que não? Você encontra a reportagem de Eduardo Faustini e André Luiz Azevedo na página eletrônica do Fantástico.
Para fazer a matéria, com autorização da direção do grande hospital pediátrico, Faustini convidou quatro empresas dentre as maiores fornecedoras do Governo Federal, três delas sob investigação do Ministério Público por diferentes irregularidades e que, segundo a reportagem, receberam juntas cerca de meio bilhão de reais em contratos com verbas públicas, apesar da situação.
Toesa Service: locadora de veículos, foi convidada para a locação de quatro ambulâncias. Cassiano Lima, gerente que representou a empresa, ofereceu primeiramente 5%, aumentou para 10% e, por fim, fechou em 15% o valor da propina para garantir a sua vitória na “licitação”. Mais tarde, a reportagem mostra David Gomes, presidente da empresa, avalizando o acerto com o gerente: “Bateu o crédito na conta. No máximo 48 horas depois, está na sua mão.” Gomes ainda disse: “Uma das coisas que eu passo para os meus filhos e que eu aprendi,: eu protejo meu contratante, meu contratante me protege”.
Cassiano Lima e David Gomes (falando, com os óculos na mão)
Rufolo Serviços Técnicos e Construções: prestadora de serviços de vários hospitais, foi convidada para a mão de obra de jardinagem, limpeza, vigilância e outros serviços. Foi representada pela gerente Renata Cavas, que ofereceu 10%, aumentou para 15% mas, quando o reporte quis saber se ela era capaz de aumentar para 20%... “Tranquilo, você manda. Eu quero o serviço.”, afirmou.
Renata Cavas
Locanty Soluções e Qualidade: convidada para a coleta de lixo hospitalar, a empresa foi representada pelo diretor Carlos Alberto Silva e pelo gerente Calos Sarres. Esse último informou que a empresa possui mais de 2 mil contratos, Silva acrescentou que a empresa possui, aproximadamente, 3 mil clientes nesse serviço. Sarres afirmou “... a gente joga o percentual que você desejar, que você achar que encaixa” e Silva “A margem, hoje em dia, fica entre 15 e 20”. Sarres falou ainda como era feito o pagamento da propina: “Onde você marcar. Os caras são muito discretos. Nem parece que é dinheiro. Traz em caixa de uísque, caixa de vinho. Fica tranquilo. A gente está acostumado com isso já.
Carlos Alberto Silva (de cavanhaque) e Carlos Sarres
Bella Vista Refeições Industriais: enviou o representante comercial Jorge Figueiredo para a negociação. Ele explica como funciona o esquema em seu ramo de atuação: “Em alimentação, nós temos que considerar a quantidade diária, colocar mais um valor ali em cima, que no montante do mês a coisa vai crescer. Então o que eu vou fazer? Eu vou te apresentar os preços e você vai dizer: ‘Figueiredo, tu vai botar mais xis aí em cima’”; fala da experiência da empresa no mercado: “Somos uma empresa aberta para negociação. Forneço para Jardim Zoológico, Guarda Municipal. Forneço para Policia Civil, a gente está em todas”; e dá exemplo de como, nesse ramo, o esquema pode “render” valores absurdos: “Eu tenho fornecimento de 12 mil serviços por dia. Aí, meu irmão. Tu bota 12 mil serviços em um dia, acrescentando mais um real em cada serviço e projeta isso para 30 dias. Aí é o diabo”. Esse exemplo, mostra um desvio de R$ 360.000,00 de verba pública, só em alimentação, em um mês de contrato.
Jorge Figueiredo
A licitação desse caso foi feita por carta convite, o que a lei permite em casos emergenciais, em casos que não podem aguardar a tramitação de uma licitação normal. Mas segundo a reportagem, “emergência” pode ser o código para licitações e concorrências de carta marcada. Claudio Abramo, diretor da Transparência Brasil, organização independente de combate à corrupção, explica: “Emergências existem. Um terremoto derruba as pontes, enchentes. Agora, uma coisa que acontece demais são emergências planejadas. Você tem uma repartição pública lá e o sujeito do almoxarifado, juntamente com o diretor, que sempre está conivente, deixa o papel higiênico chegar em um ponto em que ,'amanhã vai acabar o papel higiênico, temos que comprar papel higiênico por emergência!" Mesmo nesses casos, a lei prevê concorrência. É aí que começamos a entender o esquema de corrupção que é mais comum do que imaginamos. Claudio Abramo
A empresa convidada (e contratada de antemão), traz as concorrentes que apresentarão preços superiores aos dela, garantindo sua “vitória” e a propina acertada com o contratante. É uma troca de favores: as demais aceitam entrar para perder, participar da licitação fraudulenta, porque fazem parte do esquema de corrupção e, em outras “licitações” desse tipo elas convidam a outra para apresentar preço superior, também entrar para perder. “No mercado, a gente vive nisto. Eu falo contigo que eu trago as pessoas corretas. Vigarista, não quero nunca”, afirma Rufolo Villar – que apesar de não estar no contrato social da empresa de sua mãe e seu tio, diz ser quem responde por ela – e acrescenta: “Felizmente, nós temos um acordo de mercado. Isso é normal. Eu faço isso direto. Tem concorrência que eu nem sei que eu estou participando”. E a sua gerente, Renata, ainda afirma: “É a ética do mercado, entendeu?”.
Podemos notar nesse momento, o quão comum é essa prática nefasta e como os valores dos detentores do capital são diferentes dos nossos valores, de quem paga seus impostos e espera o retorno através de investimentos em Saúde, Segurança e Educação, e presencia cenas lamentáveis como esta, onde a verba pública escorre pelo ralo da corrupção e vai parar no esgoto social dos vermes parasitas da miséria do povo brasileiro. Para eles, fraude é “acordo de mercado”; vigaristas são “pessoas corretas”; e esquema de corrupção é “ética de mercado”. Isso, por si só, explica a situação em que se encontram os serviços sociais de nosso país, a situação de abandono que se encontra a Saúde Pública, a Educação, o saneamento básico, entre outros, que são obrigação do Estado. Somente nessas “licitações”, se fossem concretizadas, seriam desviados quase R$ 1.400.000,00:
Rufolo: receberia R$ 5.184.000,00 e a propina seria de mais de R$ 1.036.800,00;
Locanty: receberia R$ 450.000,00 e a propina, quase R$ 70.000,00;
Toesa: receberia R$ 1.680.000,00 e a propina seria de R$ 250.000,00;
Bella Vista: no meio da licitação desistiu de disputar o contrato.
Depois de apurado o esquema, o Fantástico entrou em contato com alguns dos que aparecem nas gravações e tentou manter diálogo com os outros e, é claro, “TODOS” negaram participar de esquemas fraudulentos e a darem declarações a respeito.
A facilidade encontrada pelas empresas corruptas para se apoderarem do dinheiro público se deve às brechas das leis e ao fato de o capital ainda falar mais alto entre os homens. Na verdade, a legislação brasileira é cheia de brechas justamente para proteger aos detentores do capital, àqueles em condições de contratar bons defensores, advogados conhecedores dos atalhos que permitem que a impunidade impere.
Indignação? É claro que sentimos ao tomarmos conhecimento de tal matéria. Surpresa? Até podemos sentir, não pelo fato em si, mas por se repetir na forma já conhecida e denunciada pelo mesmo Fantástico. Retornemos ao que o repórter André Luiz Azevedo disse no início da matéria e à nossa pergunta inicial: “O Fantástico mostra agora o mundo da propina, da fraude, da corrupção. De um jeito como você nunca viu.” Será mesmo que não?
Um ano atrás, mais precisamente em 13/03/2011, o mesmo Fantástico fez uma reportagem sobre a “Industria das Multas”, onde outro repórter se faz passar por um funcionário de uma prefeitura do interior gaúcho. O apresentador Zeca Camargo abre a reportagem dizendo: “... agora vamos apresentar uma reportagem especial. Um retrato da ‘Indústria da Multa’, como você nunca viu.” A abertura da reportagem anterior também usa-se a frase “Como você nunca viu.”
Nesta matéria, a empresa Engebrás negocia a instalação de lombadas eletrônicas e radares fixos. Como uma resolução do Conselho Nacional de Trânsito estabelece regras para o serviço, como estudos técnicos feitos por empresas especializadas, o seu representante indica a ACT-Trânsito (Assessoria, Consultoria e Treinamento), de Porto Alegre. Paulo Aguiar, um dos sócios da ACT, propõe ao repórter a contratação pela modalidade “carta convite”, onde ele indicaria “duas empresas parceiras para a “licitação”: “Sem problema. Tenho mais duas empresas que trabalham comigo”. Alguma semelhança com a reportagem do dia 18?
Paulo Aguiar
Dois meses depois, em 22/05/2011, o Fantástico mostrou a ação da Polícia Federal cumprindo mandado de busca e apreensão na casa do empresário Dálci Felipetti, dono da Sulmedi, uma distribuidora de remédios, na cidade de Barão de Cotegipe, interior gaúcho, e em mais 29 cidades de sete estados. No total, 64 pessoas (entre eles empresários, funcionários de prefeituras e secretários de saúde) foram presas por fraude em licitações na compra de medicamentos que deveriam ser distribuídos à população.
O esquema partia de duas pequenas cidades gaúchas, Barão de Cotegipe (sede da Sulmedi) e Erechim (sede de outras distribuidoras), e se espalhavam por cidades do interior brasileiro, sem a concorrência das grandes empresas do setor.
Como funcionava o esquema? As prefeituras enviavam convites apenas para as empresas envolvidas no esquema: duas faziam ofertas altas e uma terceira, conhecendo a proposta das demais, oferecia melhor preço para ganhar a “licitação”.
Um repórter do Fantástico se fez de funcionário de uma prefeitura e recebeu a proposta de um vendedor: “Se me custa, por exemplo, R$ 40 mil tudo isso aqui, daí pode ser 20%. Porque daí sobra uma margem pra gente cobrir os custos, frete, tudo, e sobra uma margem pra empresa. A gente divide o lucro com vocês.” Mais uma vez, a “licitação” é feita por carta convite e as empresas levam outras duas concorrentes que entrarão na concorrência para perder, favorecendo a empresa contratada de antemão para dar um percentual do contrato para um agente público.
OPINIÃO
Não devemos demonizar a classe empresarial e isentar o Estado de sua responsabilidade. As três reportagens do Fantástico mostram um mesmo método sendo utilizado em anos, estados e cidades diferentes: carta convite, empresas “parceiras” e percentual como propina para o contratante. Será que isso não indica uma prática comum, conhecida e tolerada pelo meio político que se beneficia de alguma forma, sempre em detrimento dos direitos e interesses da maioria da população? Será que a corrupção é uma prática exclusiva do meio político e empresarial?
Devemos observar que, se há fraudes em licitações e desvios da verba pública, é porque ambos os lados (empresarial e estatal) são partes integrantes de um esquema de corrupção já enraizado, não só no meio político e empresarial mas, infelizmente, no cotidiano do brasileiro. Do lado empresarial e estatal, isso ficou patente com essas três reportagens e com o “escândalo dos sanguessugas”, que segundo a Polícia Federal, teve uma movimentação financeira total de cerca de R$ 110 milhões entre os anos 2001 e 2006, entre os dois últimos anos do governo tucano e os três primeiros anos do governo petista. Do lado do cidadão comum, isso fica patente quando alguém “fura uma fila de banco”, desrespeitando o direito daqueles que chegaram antes e que perdem o seu tempo para não prejudicar aos outros e cumprir os seus compromissos, ou quando se dá um “cafezinho” ou uma “cervejinha” ao guarda de trânsito ou ao policial rodoviário para se livrar de uma multa, que já indica um desrespeito a alguma lei de trânsito e, para não ser prejudicado financeiramente por esse erro, ainda suborna um agente público, errando novamente.
Por isso, caro(a) leitor(a), na próxima reportagem sobre o assunto, seja no Fantástico ou em qualquer outro veículo de comunicação que você tomar conhecimento, antes de se indignar contra a corrupção, se pergunte: Eu já dei um “cafezinho” ou uma “cervejinha” a algum policial para me “quebrar o galho” e não aplicar uma multa de trânsito? Já “furei fila”? Alguma vez tirei vantagem em detrimento dos direitos de outra(s) pessoa(s)?
Se a resposta for sim, não fique indignado(a) pois você é uma pessoa ilícita como qualquer um desses, em menor grau, é verdade, mas corrupta ou corruptível. Ou se sentir tentado(a), antes de cometer qualquer um desses atos, lembre-se dessas reportagens e evite se igualar a esses canalhas que atrasam nossas vidas. Não ajude a perpetuar em nosso país a podridão, o “mar de lamas” que impede o nosso progresso; que provoca a miséria que testemunhamos nas esquinas das periferias; que mata as pessoas nas filas de espera dos hospitais públicos por falta de médicos e/ou de leitos; que condena centenas de milhares - pra não dizer milhões - de pessoas ao analfabetismo, se não de fato, pelo menos funcionais; que cria as vítimas do abandono e da indiferença, que a “sociedade” ignora nas favelas desde a infância, que quando crescem se revoltam e cobram da “sociedade” e essa hipocritamente chora “por ser vítima da violência”.
Pense se você está fazendo a sua parte. Se a resposta for “sim, estou fazendo a minha parte”, parabéns: você está contribuindo, se não para melhorar o nosso Brasil, pelo menos para que ele não piore. Mas, se a sua resposta for “não”, me desculpe, mas você não tem direito algum de reclamar ou de lamentar, a não ser o fato de não ter a “sorte” deles, de “roubar” a mesma quantia que estão roubando de todos nós.
"É preferível viver no analfabetismo a ter que aprender a ler na cartilha da Corrupção. Mas o melhor mesmo é 'Aprender a Ler', a lutar e rasgar a tal famigerada Bandida que tanto nos oprime..."
Iodircelene de Carvalho Pereira